Sem querer deletei todo o antigo blog. O Quadrante Delta ficou ainda mais perdido no espaço... Através deste novo veículo retorno àquelas paragens. Refaço o caminho, reconheço o trajeto e, embora não possa recuperar o que já está perdido, o quadrante ainda reserva mundos inexplorados. Boa viagem!

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Sobre repressão e resistência

     Hoje fiquei em choque. Recebemos um grupo lá no museu de uma escola religiosa (não era católica), uma turma só de meninas. As meninas não podiam visitar todas as salas da exposição, pois não podiam ver nus.  Nenhum tipo de nu.
       O nu é natural, faz parte da natureza e da arte, difícil trabalhar com arte proibindo o nu.
      Mas como também é tabu em nossa sociedade hipócrita e recalcada e esse não foi o primeiro grupo a ter “problemas” com as obras que envolvem o tema.  No caso específico do Segall não falar de nu também implica em não falar da prostituição e todas as questões sociais envolvidas, trabalhadas delicadamente pelo artista. Perde-se tão rico ponto de discussão...
      Mas a peculiar visita foi além: pela recomendação da escola não devíamos entrar em detalhes sobre a vida do artista, não poderíamos abordar seus dois casamentos e, pasmem, não deveríamos questionar muito as crianças. “Elas não costumam ser questionadas”, nos disseram.
      Me vi num misto de surpresa e revolta. Como, em 2013, ainda existe tanta repressão neste mundo? Por que isso? Onde esse modelo encontra apoiadores?
     Lembrei que era um grupo feminino e isso me deu mais raiva ainda. Por que reprimir assim nossas meninas? As mulheres já suportam tanta discriminação e descrédito velados no mundo aqui fora, já crescem inseguras nas escolas tradicionais por aí, bombardeadas pelos modelos infalíveis da mídia, pelas expectativas por suas sexualidades, seus corpos, seus afetos. Por que também fechá-las num mundo a parte onde não podem oferecer nem procurar respostas que lhes satisfaçam?
     Ora, o problema não está em ser um grupo feminino em si. Eu já trabalhei com grupos femininos por muitos anos e participo hoje de grupos de mães que buscam uma maternidade ativa e consciente e sei o quanto os grupos femininos também podem ser espaços de resistência, de fortalecimento e de luta. Ao contrário do que muitos pensam, nós, mulheres, assim como outras minorias, precisamos desses grupos, desses focos de força e mudança.  É tão potente isso. Pode ser tão potente um grupo de mulheres!
      E tudo isso me fez pensar nesses espaços de gênero no século XXI e como é impossível que sejam neutros. “Aqui falamos sobre livros”; “Aqui falamos sobre gestação”... Pode ser, mas nunca é só sobre uma coisa ou outra. Quando se está num grupo só de mulheres automaticamente se fala do feminino e se fala de sociedade, política e questões de gênero. Ou há luta, ou há reforço do estabelecido. Ou há resistência ou há aceitação. Ou há feminismo, ou há machismo.

      E as meninas da visita, hoje, que não podiam ser questionadas?
      Questionaram. Pra caramba!
    Mas eu não consegui ficar otimista, fiquei pensando em que transformarão toda essa educação repressora no futuro...

terça-feira, 7 de maio de 2013

Das maiores delícias que provei


   



   Não sei se comentei que sou uma pessoa ligada à sonoridade e ao significado das coisas, ou seja, sou uma pessoa que ama pensar (e escolher, combinar e expressar) palavras. E eu, cá comigo, tenho minha pequeníssima lista de palavras preferidas. Eram quatro. Uma a uma acrescentada a tal lista em uma fase específica da vida.
   
   O processo gestação/parto/maternidade somou à minha vida uma quinta palavra preferida (vejam que a ordem é pela antiguidade e não tem caráter de importância).  Posso dizer que ela veio com o processo todo, mas foi impressa de fato no momento do parto e vem sendo confirmada dia após dia desde então, como se a cada mês eu tivesse mais certeza de que ela entrou na lista pra ficar.

   A quinta palavra é a palavra DELÍCIA.

   Dizer a palavra delícia é uma delícia. Pensá-la também é. Senti-la com toda a força e a beleza do “i” (eu adoro “i”) dividido pelo deslizar gostoso do som do “s”, que só não está em sua grafia por um capricho da língua portuguesa. Delícia! O “de” só anuncia a intensidade, o “a” apenas finaliza suavemente o prazer da palavra perfeita. Delícia!

   A palavra perfeita me foi lembrada no momento perfeito – assim que pari meu filho – pelas pessoas que me acompanharam. O momento me presenteou com a sensação ao mesmo tempo em que o nome era repetido, não por uma, mas por duas pessoas. Nunca antes havia sentido, provado, ou ouvido esta palavra daquela forma, tão plena de significado. Tudo se encaixou perfeitamente.

   Pois bem. Assim identificada minha nova palavra foi revivida em experiências diversas ligadas à maternidade. Lembranças do período gestacional me mostraram que ela (a palavra) já estava comigo há algum tempo, sem que eu a tivesse percebido. Hoje, 6 meses depois do parto, relembro as maiores delícias de gestar, parir e maternar vividas até hoje, vamos a elas:

   Sentir o bebê se mexendo dentro da nossa barriga, empurrando, se ajeitando, numa comunicação de vida pulsante e sem intermediários. Receber os sorrisos, o carinho e a atenção de pessoas desconhecidas, responder às perguntas das crianças pequenas, encontrar o olhar doce e a fala nostálgica das outras mães, se deparar com a ternura nos olhos dos idosos que veem em você o desdobrar da vida. Ser profunda e docemente cuidada pelo mundo.

   Experenciar o assombro de parir. O amálgama de sentimentos e sensações do momento do parto. A sensação de ser capaz de tudo no mundo. O sentimento de fêmea, de cria, de ninho. O contato com a pele do bebê, de início pegajosa e escorregadia, depois quente e extremamente macia. O sentimento profundo e avassalador que sobe das nossas entranhas e transborda pela nossa voz, nossa boca, nossos orifícios todos, sem medida nem censura. A fusão com o nosso filhote e o apagar do mundo.

   A perfeita biologia dos primeiros dias pós-parto, que é química, pois se deve a uma descarga hormonal inédita naquele corpo, mas que também é física, porque corre por dentro, arde e quase queima de um prazer incomensurável. Que é emocional também, porque deixa uma saudade sem fim.
   
   Se perder nos olhos dos nossos filhos, na imensidão fluida de seus primeiros dias e na concretude que chega aos poucos com as primeiras semanas, quando suas pupilas começam a nos acompanhar. Se perceber na devoção daquele novo olhar que nos dirigem, olhar de namoro, de conexão, olhar de uma paixão antiga que se manifestará por tão pouco tempo.

   Os sorrisos todos. Os primeiros espasmos que são os sorrisos que queremos ver. O primeiro sorriso-resposta. A gengiva exposta, ímã de outros sorrisos. Os sorrisos dos olhos, que se apertam como peixinhos miúdos e a gargalhada, o sorriso que se faz som, que explode e inunda seu entorno.

   O minúsculo corpo quente ao nosso lado na cama. O corpo no peito, a pele e a mini mão que encontramos no escuro. Os dedos dos pés que agarram ao serem tocados. Os primeiros apertões dados por aquelas pequeníssimas mãos no nosso peito, nossos dedos, nosso rosto.

   O modo maravilhoso como fecham os olhos e abrem a boca aos serem tocados no rosto, procurando sua fonte nutriz. A boca que se abre num quase gozo, como se perdesse o fôlego de prazer ao sentir a proximidade da gente, uma boca que não define se quer mamar, rir ou respirar, porque de fato está tudo conectado. Um rosto que espera ser tocado, olhos que se fecham com ternura e esperam o beijo, a respiração, a voz, o contato primordial. Como negá-lo?

   Amamentar. Sentir-se plugada àquele outro que, de certa forma, é parte de você. Saber que você é tudo que ele precisa no mundo e vice-versa. Os olhinhos que se fecham numa hipnose. Os mesmos olhos, abertos, olhando através dos seus, invadindo cada recôndito do seu ser. O semblante, quando ele para de mamar e te observa profundamente.  Os sorrisos que brotam do trinômio boca-peito-olhos como presentes raros e valiosos.

   Quando eles descobrem o mundo e querem pegá-lo inteiro. Cada nova conquista. Mãozinhas rápidas, olhar atento, novas posturas diante de tudo. Equilíbrio, mobilidade, intenção. Quando nos agarram e puxam loucamente, principalmente se esse presente for só nosso, de mais ninguém. Quando descobrem a voz, os pés, o corpo todo. Quando se descobrem no espelho. Quando descobrem.

   Quando aprendemos sobre o amor, o não controle, os nossos medos e a nossa força. Quando nos perdemos para nos reconhecer outra. Quando aprendemos, finalmente, sobre nós mesmas.


segunda-feira, 25 de março de 2013

Sobrevivência


Pari meu filho naturalmente. Sem cortes, sem soro, sem analgesia, sem ordens e sem pontos. Sim, eu pari como nossas ancestrais e sobrevivi. Sobrevivemos, eu e meu filho, e muito bem. Ele nasceu forte e ativo. Não foi aspirado, furado, medicado ou medido. Respirou, olhou, sentiu, viveu. Simples assim.
Após seu nascimento veio para meu peito. Não se interessou em mamar no primeiro dia, mas não houve desespero ou metas, ficou aconchegado a mim como qualquer mamífero faria ao nascer. Quando quis ele começou a mamar, e não parou mais.
Ninguém o levou pra longe, ninguém achou que ele não sabia mamar, ninguém deu leite artificial pra ele, ele foi pesado aos três dias e aos três meses. Hoje está com quatro meses e meio, forte, ativo, tranquilo e feliz e se alimenta apenas do meu leite. Sem complementos, sem chá, sem suco e sem água. Ele nunca viu mamadeira ou chupeta. E sobreviveu.
Se estivéssemos longe da civilização nós teríamos sobrevivido ao nosso parto perfeitamente e ele estaria se alimentando exclusivamente do meu leite, como faz hoje. Sobreviveríamos, olha só, sem médicos ou indústria! Somente com o que a natureza nos deu. É bonito, barato e funciona perfeitamente.
Mas sei, com pesar, que não teríamos sobrevivido se me tivessem feito acreditar que meu leite é fraco, que meu peito é pequeno, que meu bebê dorme demais ou de menos, que chora demais ou de menos. Se me levassem ao medo por ele não ter mamado nos primeiros dias e me orientassem a complementar com leite artificial, ou a procurar mil profissionais antes de confiar no meu corpo.
Talvez não sobrevivêssemos se tivéssemos pesado o bebê a cada 15 dias, obcecados por uma curva de crescimento que pretende dizer mais que a própria criança.
Talvez não tivéssemos sobrevivido se estivéssemos no lugar de outras mães e bebês, inundados de palpites bem intencionados, de histórias trágicas ou de orientações técnicas demais. É bem provável que tudo isso minasse nossa confiança, nossa relação, abalando nossa conexão tão íntima.
Da mesma forma, eu provavelmente eu não teria sobrevivido ao parto se tivesse sucumbido ao sistema de saúde tradicional, se tivesse me deixado convencer que eu era muito velha, muito sedentária, muito fraca para parir. Se me fizessem acreditar que eu precisava ser cortada e medicada, que eu não saberia fazer, que eu não suportaria a dor, que meu filho sofreria e tantas outras coisas.
Sobreviver hoje, na selva da civilização, ganha outro significado. Hoje é preciso sobreviver não à natureza, mas à medicalização, à indústria, ao marketing, ao negativismo, às verdades institucionalizadas.
É preciso se munir de força, boa informação, instinto e ouvidos moucos.
Quatro meses e meio. Seguimos vivos, inteiros e com nossas crenças reforçadas.
Que venham as próximas fases.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Carta ao meu filho cuidador




Filho,

Obrigada por cuidar de mim tanto e tão bem. Sabe, eu ouvia falar na fusão mãe-bebê e não acreditava muito, não compreendia. Como assim seres fusionados?
Esta semana, olhando de volta para nossas primeiras semanas juntos, enxerguei claramente a segunda fusão (porque acredito que a primeira seja a intra-uterina mesmo). Lembrei-me de mim naqueles dias e consegui me ver plenamente conectada a você, sempre em contato com a sua pele, atenta aos seus movimentos, reproduzindo suas expressões. Seu desconforto, seu prazer, sua serenidade, e até seus esboços de sorrisos ressoavam em mim automaticamente.
O mundo exterior não existia, era como uma imagem sem sentido, um filme velho. Os dias continuavam correndo, as pessoas trabalhando, os carros entupindo as ruas, as buzinas, semáforos e o comércio continuavam lá fora. No entanto, eu era como fêmea na toca. Meu calor supria seu calor e se alimentava dele ao mesmo tempo. A conexão era mental-físico-química-amorosa. Isso mesmo! Tudo ao mesmo tempo. Era estranho até ficar num cômodo da casa diferente do seu.

E assim passamos os primeiros dias, dormindo juntos, nos alimentando juntos, grudados feito bicho porque não precisávamos ser mais nada além de bicho, e que delícia isso!
Você começou a perder as feições de recém-nascido, os hormônios do parto se dissiparam, o mundo voltou a tomar alguma cor, mesmo que ainda sem sentido.
Na próxima semana você completará quatro meses. Você está cada vez mais risonho, gostoso e apaixonante. Começa a brincar e presta atenção em tudo. Me dá um medo de que cresça muito rápido e de ter que me separar de você... Mas esses são outros assuntos que terei que retomar em breve. Por hora queria te agradecer por cuidar de mim tanto e tão bem.
Alguns dias são bem difíceis ainda. Este puerpério desencavou questões muito profundas do meu ser, abalou minhas certezas, minha identidade, meus apoios e trouxe tantas coisas belas, tristes, maravilhosas... Coisas que reverberam ao menor estímulo e descem em enxurrada lavando, levando, limpando o meu ser, ou o que restou dele.

E você com isso?

Você é meu cuidador. Sempre, quando o dia começa você me recebe com um sorriso de gengiva indescritível, me lembrando que a vida chega com o dia, como você também chegou. És um recarregador de baterias poderosíssimo, meu filho.
Quando estou ocupada, mas estou bem, você dorme ou me faz companhia, sempre bem de pertinho, e no seu sono, vela pela minha vida, como velo pela tua. Quando preciso fazer algo que não gosto você me chama para brincar, para ninar, para estar com você e me lembra que a vida é muito mais que as tarefas burocráticas do nosso dia-a-dia. Quando saímos você é meu companheirinho, meu piercing, meu protetor, porque com você me sinto mais forte.
Nos dias nos quais estou muito feliz meu peito se enche de leite e você mama até cansar, brinca até cansar e dorme feliz, sereno, enquanto sinto a felicidade fazer arder de novo o peito, produzindo mais e mais leite, mais e mais amor.
E em outros dias, quando a tristeza me pega, você cuida especialmente de mim. Se eu choro, você chora também. Eu reluto, você insiste. Não desiste até que eu te dê colo, até que eu ganhe seu colo no meu.
Se a solidão toma conta do dia você me requer mais perto, pede mais pele, mais peito, mais olhar. Como quem diz “Você não está sozinha. Estou aqui com você mamãe.” Você me olha com seus olhos profundos de quem sabe tudo o que eu sinto e me segura, me acolhe, me ergue de novo. É... Você me ergue! E se começo a me levantar você me recompensa com sorrisos e mostra como a vida é realmente linda.
Talvez eu tenha perdido parte das minhas habilidades de fusão das primeiras semanas, mas você, meu filho, as mantêm por nós dois. Fusão com upgrade, adaptada a nova fase que vivemos. Fusão expressa no olhar que nenhuma fotografia pode capturar e que, não sei não, mas acho que ninguém além da gente pode ver.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Mais uma metáfora para o mergulho e o vôo




Já acreditava que ser mulher é muito melhor do que ser homem. Ser homem me parecia mais fácil, mais liso, mais fluido e mais raso, embora eu nunca tenha sido pra saber. Mas ser mulher me soava mais forte, mais intenso, mais profundo, era melhor e era pior ao mesmo tempo, pois era extremo.
Algumas vezes me perguntava se era o gênero feminino que carregava toda essa intensidade ou se era eu mesma e se tudo não passava de uma análise equivocada do “ser mulher”.
Quando começou a popularização do termo “bipolar” (e sua banalização) cheguei a pensar sobre a bipolaridade e meu próprio ser. Acho completamente exagerado essa coisa de ficar colando rótulos médicos nos modos de ser das pessoas, mas de qualquer forma o termo me fez refletir. Se muitas vezes coisas banais podiam parecer tão maravilhosas, ou tão terríveis, é porque a vida em si é especialmente intensa, e a intensidade de viver é a revolução que acontece aqui dentro, não depende do que fazemos externamente.
Pensei se não trariam as mulheres em si toda essa “bipolaridade”. Essa intensidade maluca feito montanha russa, pois (lembro das aulas de biologia) é como uma montanha russa o gráfico mensal mais banal dos nossos hormônios e é muito fácil, para nós, ir da euforia à extrema melancolia em poucos minutos.
Bem, mas a gente nasce, a gente cresce, e um belo dia a gente engravida. Com a gestação e o parto nos aproximamos da porção mais fêmea do nosso ser. Ser fêmea, neste sentido diz mais que apenas ser mulher, já que o “ser mulher” carrega um teor cultural muito forte e, na maioria das culturas, apresenta uma visão machista do feminino.
Ser fêmea é se deixar ser leoa, ser cadela, é deixar fluir o instinto de sobrevivência, ouvir o instintivo, o sexual, defender a cria, entocar-se com ela, desprezar as relações exteriores. No puerpério, junto com todos os instintos de fêmea e todo o paradoxo social ( e quem aguenta esse fru-fru todo em volta do bebê?), a fêmea em questão, mergulhada em hormônios (ou na falta deles), desequilibrada, ausente, feliz e infeliz, se debate na nunca tão intensa bipolaridade de ser mulher.
Onde um “a” pode acabar com o dia, um “b” pode levar rapidamente ao êxtase, uma lágrima desespera, uma respiração tranquiliza e um sorriso salva o mundo.
Se antes já considerava intensos meus sentimentos diante do mundo, hoje, puérpera, essa intensidade pulsa como nunca, me leva numa espiral louca sobre a qual não tenho controle, onde por vezes respiro, por vezes sufoco. Por vezes estou dentro, por vezes estou fora. Por vezes ardo de amor, subo, voo. Por outras desço triste e mergulho em meus confins.