Sem querer deletei todo o antigo blog. O Quadrante Delta ficou ainda mais perdido no espaço... Através deste novo veículo retorno àquelas paragens. Refaço o caminho, reconheço o trajeto e, embora não possa recuperar o que já está perdido, o quadrante ainda reserva mundos inexplorados. Boa viagem!

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

RELATO DE COMO PARI DIMITRI E MIRO

Um susto.
Um atropelo.
Um nem sei explicar...

UMA HISTÓRIA SEMPRE COMEÇA ANTES DA PRIMEIRA FRASE

Sempre que eu lia relatos de parto de bebês que não eram os primogênitos esses relatos começavam no parto do bebê anterior. Não entendia e confesso que também sentia preguiça de ler esses prólogos todos e, na maioria das vezes, pulava e ia direto para as contrações. Hoje, tentando escrever o relato de meu segundo parto percebo que não dá pra fugir daquela outra história, daquele outro livro, que a gente achou que estava terminado. Percebi que para relatar a vinda de Dimitri e Miro eu preciso voltar à chegada de Iuri, quase quatro anos antes.

Para facilitar a vida do leitor então eu vou dividir a história em pedaços, assim quem quiser fazer uma leitura parcial é só se guiar pelos subtítulos e pular o que não interessar.

Minha história de maternidade começou com meu filho mais velho, Iuri, hoje com quatro anos. Minha história de amor ao gestar-parir-amamentar também começou com ele. Resumidamente eu definiria o vivido com ele como intenso-tranquilo-doce. Minha primeira gestação foi muito leve e ativa, eu fazia de tudo, inclusive trabalhar com crianças de cócoras até dias antes do parto. Meu primeiro parto foi tranquilo e rápido (6 horas). Foi sim bastante intenso e transformador, mas não houve intercorrência, não houve demora, não houve atropelo. Pari Iuri em casa, segurei ele melecadinho nos meus braços, levantei, tomei banho, comi e caminhei em seguida. Me senti a pessoa mais disposta do mundo depois que ele nasceu. Recebi nesse momento um cuidado carinhoso das pessoas que estavam comigo que minha mente não apaga.

Posso dizer que a parte mais tensa da história do dia que pari Iuri foi perceber que ele viria e os cueiros não estavam prontos, e a parte mais atropelada foi não ter dado tempo de encher a banheira porque ele já ia nascer. Parece ironia, mas é verdade e isso ilustra a tranquilidade da chegada de Iuri, meu sol, o menino mais sorridente que conheço.

3 dias depois do seu nascimento eu já falava do parto com prazer. 7 dias depois eu já queria parir de novo. 20 dias depois eu já PRECISAVA parir de novo. Abstinência mesmo sabe? Fissura? Pois é...

O puerpério daquela vez foi intenso e profundo emocionalmente mas leve no que diz respeito aos cuidados com o bebê. Bem, não vou entrar nesse assunto de puerpério aqui, acho que essa introdução já deu conta do que precisamos agora.

Para saber mais do parto do Iuri leia aqui


SEGUNDA GESTAÇÃO E UMA SEQUÊNCIA DE SUSTOS

Quando peguei meu beta positivo em janeiro de 2016 fiquei muito feliz. Eu queria muito ter mais um filho e queria que Iuri tivesse irmão ou irmã. Eu imaginava uma gestação e um parto tranquilos, como da primeira vez, ainda que soubesse que tudo podia ser diferente.

Acontece que eu não estava preparada para tanta diferença assim. No primeiro ultrassom, com 7 semanas veio a surpresa que mudaria tudo: eram dois bebês na minha barriga! Dois! As primeiras coisas que passaram na minha cabeça na hora que a médica deu a notícia foram: 1) não vão poder nascer em casa 2) complicações na gestação.

Ao contrário do que muitos podem pensar eu não fiquei nem um pouco preocupada em como ia cuidar de três crianças. Eu sabia que daríamos um jeito. O que me amedrontou durante todo o tempo foi o que poderia acontecer durante a gestação e como seria o parto.

Minha gestação teve três momentos: dois grandes períodos difíceis e um curto e excelente no meio deles.

De janeiro até abril eu sentia muito sono, uma sensação de ressaca constante, corpo mole, cansaço e – desta vez – enjôos. Meu filho ficou sem mãe porque ou eu estava trabalhando ou eu estava deitada (que era a posição em que eu enjoava menos). A gente brincava de lego e de bola na cama mas logo ele ficou saturado e começou a dar sinais de agressividade e tristeza pela falta da mãe. Quando lembro me dá vontade de chorar. Junto com isso um medo enorme de que um dos bebês não sobrevivesse ao primeiro trimestre. Essa fase toda durou até 18 semanas.

Entre 18 e 22 semanas eu me senti super disposta e estava curtindo muito a barriga, que já era bem grande. Após uma semana trabalhando muito fomos passar duas semanas em Alter do Chão, na casa de amigos, na floresta, beirando um igarapé. Foi o melhor período de toda a gestação. Os enjôos tinham ido embora e eu tinha um bom apetite. Lá, deitada na rede, senti meus bebês se mexerem pela primeira vez. Nadando, andando no mato, vendo a chuva eu senti que nos conectamos, e tive um sonho muito forte e cheio de detalhes. Eu sonhei com o parto e vi cada um dos bebês. O primeiro a nascer era uma menina, forte e brava, grande e vermelha. O segundo era um menino moreno, pequeno e delicado que nasceu dentro da bolsa. Ele tinha um ar misterioso, suave e profundo ao mesmo tempo.



Foi um sonho muito intenso, que só poderia ter acontecido num lugar assim. Pouco depois dessa viagem eu estava contando o sonho para uma pessoa e me veio uma visão. Eu me vi morando próximo a natureza, com meus três filhos em volta, e vi cada um deles de novo, um pouco mais crescidos. Iuri, o mais velho era como o sol, positivo, feliz, iluminado, era o filho que me ensinaria a sorrir e viver de forma alegre. A segunda era uma menina decidida, ágil, forte e também muito amorosa. Ela tinha uma energia de batalha. Ali vi que ela seria a filha que me ensinaria a lutar. O terceiro era um menino miúdo e moreno que me olhava de soslaio por trás das colunas e acontecimentos. Nos seus olhos intensos uma sabedoria antiga, difícil de explicar. Ele era profundo, quieto e estranhamente presente em sua quietude. Tinha uma energia prateada, como a noite. Percebi que aquele filho me ensinaria coisas enormes, que eu não podia imaginar ainda.

Eu estou contando esse sonho e seu epílogo porque além de ter sido forte na época essas imagens tem conversado muito com o que me aconteceu depois, e que ainda acontece.

Voltei para São Paulo e segui vivendo por mais uma semana, até que um corrimento marrom me deu um alerta, eu precisava diminuir o ritmo. Na consulta, com 22 semanas, constatamos que o colo estava ligeiramente aberto, embora grosso. A Betina, nossa obstetra, sugeriu que eu fizesse um repouso relativo dali em diante, me afastasse do trabalho e usasse progesterona em cápsulas. Com 24 semanas vimos que a dilatação permanecera igual, podendo ser até um achado comum de segunda gestação, mas como a gestação era gemelar a opção foi continuar o repouso, de forma relativa, e manter a progesterona.

Assim, eu entrei na última etapa da gestação, e foi bem difícil. De 22 até umas 32 semanas eu fiz repouso relativo, fazia algumas coisas, mas fazia várias pausas por dia e nelas eu ficava deitada. Tive que escolher muito o que eu queria fazer, pois não dava pra fazer tudo. Tinha dias que me sentia cansada e deprimida, em outros me sentia disposta e era difícil aceitar o ritmo tão mais lento.

A vantagem de desacelerar foi que eu consegui prestar mais atenção no meu corpo e nos bebês. Logo eles definiram seus papéis. O primeiro gemelar, à esquerda, tinha movimentos fortes e frequentes e logo ficou cefálico, o que me deu um certo alívio. O segundo, à direita, se movimentava bem menos e seus movimentos eram extremamente suaves. Ele manteve sua cabeça junto a minha costela até o final.

Com cerca de 33 semanas eu perdi um pouco de tampão, a dilatação havia aumentado e o repouso foi intensificado. Tomei injeções de corticoide para ajudar a amadurecer os pulmões dos bebês e me senti bastante fragilizada. Nessa etapa final eu levantava só para tomar banho, ir ao banheiro e comer.

Os sentimentos nesse período variavam. Às vezes me olhava no espelho e me sentia linda e potente, prenha de possibilidades. Às vezes me sentia deprimida com essa vida de doente ou frustrada por estar num momento tão desejado, com uma barriga tão apaixonante e grande (eu adorava ela enorme, a da primeira gestação era tão pequena) e não poder sair, não poder curtir tudo que a gravidez representa. Muitas vezes eu também tinha medo, medo de um monte de coisa.

Eu tinha bastante medo que eles viessem antes das 37 semanas. Eu tinha medo de ter pressão mais alta do que o permitido na gestação, de ter alguma alteração nos exames, deles não ficarem bem posicionados para nascer, deles serem separados de mim e levados para UTI.

Eu sentia com força que estávamos bem e que eles nasceriam bem, ainda que pequenos, mas eu tinha pavor de, mesmo saudáveis, cairmos nos protocolos hospitalares. Deles ficarem na UTI por não terem x de peso ou de idade gestacional. Eu tinha medo de não ter o parto que poderia ou de ficar longe dos meus filhos por causa dos números! Era isso, o meu medo de prematuridade nunca foi deles nascerem cedo demais para eles, eu sabia que iam nascer quando estivessem prontos, mas tinha muito medo deles nascerem cedo demais para os outros.

Isso foi reforçado por um monte de coisas: muito mais exames no pré-natal, bobagens ouvidas por aí, sustos e repouso durante a gestação. Pra me centrar eu conversava muito com eles, falava que não sabia quem eram eles mas já os amava muito e estava feliz por eles estarem na minha barriga. Dizia a eles (a despeito de coisas que ouvi) que a nossa história não era uma patologia, mas uma ocorrência comum da natureza. Que eu não sabia como esse capítulo ia acabar, mas que a gente estaria nele juntos, para o que viesse.

Foi uma gestação difícil, física e emocionalmente, mas estar conectada com eles me fazia mais forte.


EQUIPE

Antes de prosseguir quero falar da escolha da equipe. Antes de saber que seriam gêmeos me parecia muito simples escolher uma equipe. Eu pensava em continuar com a Betina como obstetra/parteira pois é uma pessoa que gosto muito e, como queria pouquíssima gente mas queria garantir as fotos, estava inclinada em ter uma fotógrafa e não ter doula. Como sou fotógrafa tenho várias colegas de profissão cujo trabalho amo e confio então achava que a escolha seguiria critérios práticos como distância ou algo assim.

A maior parte desse pensamento perdeu sentido quando soube que seriam gêmeos. Eu não podia mais ignorar a ideia do hospital e, tendo que pensar em hospital, precisava pensar em pediatra. Tudo me pareceu tão difícil! Meu plano de saúde era bem fraco e contávamos apenas com o Hospital Sepaco e a maioria dos médicos que eu conhecia não atendia lá. Como fazer?

Betina topou me atender lá. Era uma exceção, eu sabia. Ela bancou meus planos junto comigo, entendeu a situação em que eu estava e caminhou ao meu lado. Me sinto muito grata por isso. O pediatra então tornou-se uma grande questão e eu não me sentia pronta para decidir o restante da equipe sem ter um pediatra. Não desta vez. Depois de certa procura o Douglas topou ser nosso pediatra. Fechei com ele em julho, as coisas estavam se encaminhando.

A definição de que a Fabiolla seria a doula e a Renata a fotógrafa aconteceu depois disso, mas já vinha sendo gestada desde muito tempo. De alguma forma eu senti que eram essas as pessoas certas PARA MIM, NESSE PARTO.

Betina, Fabiolla e Renata. Eu sabia da competência técnica de cada uma em sua função, mas não foi isso que me fez escolhê-las. Também não foi o amor, embora eu as ame, hoje ainda mais. Foi a energia de cada uma que me fez pensar: “Essa é a energia que eu quero ao meu lado no parto. Essa força, essa crença, esses jeitos de olhar dentro do olho ou fazer a pergunta certa, na hora certa. Esse modo de estar presente e inteira no que faz.”

Eu sentia uma energia do feminino, da vida e da terra nessas mulheres. Além disso, num mundo onde uma grávida de gêmeos fica perdida entre os que chamam a gestação gemelar de sonho e os que a consideram uma doença, eu precisava muito que estivessem ao meu lado pessoas que acreditassem que eu podia parir aqueles dois bebês, não ingenuamente, mas com consciência e respeito à intensidade do processo. Elas tinham essa crença e essa energia.


UMA SEMANA INTENSA

A semana em que completei 36 semanas de gestação (35 pela DUM) foi uma semana muito intensa e emocionalmente desgastante.

Na segunda-feira dia 15/8 eu acordei disposta e feliz. Faltava uma semana para eu sair do repouso, tudo estava encaminhado, eu estava confiante de que chegaríamos no termo. Estava ansiosa para aproveitar o final da gestação passeando com Iuri, namorando, andando por aí. Nesse dia pedi para o Val lavar e estender as roupinhas dos bebês e olhei feliz para elas no varal.

Pensando no parto resolvi mandar uma mensagem para Douglas, o pediatra, para combinar algumas coisas, pensando em minimizar possíveis problemas no hospital. Ele então me respondeu, para minha surpresa, que estava com algumas questões de saúde e não poderia mais atender nosso parto. Fiquei meio sem reação. Foi um baque às quase 36 semanas de uma gestação gemelar ficar sem pediatra. Nesse dia, no fim da tarde, veio uma chuva e molhou todas as roupinhas dos bebês no varal. Parecia uma metáfora dos picos que eu sentia, entre ternura e medo, entre animação e susto. Terminei o dia tensa, preocupada, desanimada. Não conseguia entender por que as coisas não podiam simplesmente fluírem, sem mais surpresas.



No dia seguinte falei com a Betina que sugeriu outra pediatra, a Silvia. Conversei com ela pelo whatsapp e telefone e gostei muito dela, foi bastante receptiva e topou nossos planos. Ela já tinha atendido no Sepaco e conversamos bastante sobre como fugir dos protocolos do hospital, como berçário e leite artificial. No fim do dia estava feliz: eu tinha equipe de novo e que alegria, era uma equipe só de mulheres! Me senti fortalecida por ter as pessoas que eu tinha escolhido para me acompanhar quando chegasse a hora.

Na quarta eu cheguei ao consultório da Betina feliz, tinha fechado com a Silvia como pediatra, as coisas estavam prontas para o parto, eu estava planejando com algumas mulheres especiais um chá de bênçãos para o sábado dia 20, quando eu poderia finalmente sair do repouso. (Essas mulheres estavam organizando algo especial para mim e eu sentia que seria muito importante esse fechamento da gestação, essa celebração do termo, esse acolhimento vindo dessas pessoas tão fortes e especiais.)

Mas essa alegria e confiança não durou muito, pois assim que eu entrei no consultório naquele dia a Betina me disse que estava indo viajar no dia seguinte e que ficaria uma semana fora. Pediu também que eu ficasse deitada, de pés pra cima, pois faltava pouco.

Foi um choque. Por alguns momentos fiquei sem reação. Como assim eu não ia sair do repouso ainda? Como assim ela ia viajar agora?

Acontece que eu havia entendido errado nossa conversa da consulta anterior e meu repouso não acabaria dia 20, mas só no dia 29, e ela estaria de volta dia 26 (havia uma boa diferença entre a DPP da DUM e a do primeiro US e isso contribuiu para essa confusão). Foi bastante difícil lidar com tudo aquilo naquela hora, por um lado acreditava que ia passar das 37, mas via nessa nova informação, meus dias de “não repouso” e meu final da gravidez perdidos. Eu não teria tempo de passear com meu filho, de curtir de verdade o final da gestação. Por outro lado, me deu um grande medo de parir enquanto ela estivesse fora, naquele hospital.

Naquela noite sonhei que tinha acontecido um sangramento, eu estava num banheiro público e chorava muito, pensando que eles iam nascer e a Betina não estaria ali. Então no sonho ouvi a voz dela do lado de fora. Abri a porta e ela estava lá. Eu estava com medo, mas ela me abraçava e dizia que era só um sangramento, que a gente não sabia ainda o que ia acontecer, mas que não importava, porque ela estava ali comigo.

Acordei na quinta dia 18/8 e fiquei meio prostrada. Tinha ao mesmo tempo medo e confiança. Passei o dia deitada, não levantei nem para tomar banho, eu precisava fazer tudo para que eles ficassem na barriga mais uns 10 dias pelo menos. Naquele dia o Douglas, que seria nosso pediatra faleceu. A notícia tomou os grupos e tudo estava bem triste. Ainda assim no dia seguinte pela manhã agradeci por ter passado mais um dia e uma noite sem que eu entrasse em trabalho de parto. Mal sabia eu que ele começaria em algumas horas...


UM DESMANCHE – TUDO COMEÇA

Dia 19 de agosto de 2016. Eu havia acordado grávida. Ufa! Que alívio. Tomei o café que o Val trouxe para mim na cama e fiquei um tempo navegando na internet pelo celular.

Por volta das 11h30 eu levanto para ir ao banheiro. No papel higiênico após o xixi vejo o sinal que eu tanto temia: sangue. Bem vermelho. Acho que fiquei aterrorizada. Era o mesmo primeiro sinal do meu primeiro parto, 3 anos e 9 meses atrás. Era o mesmo sinal apavorante do meu sonho.

Abracei o Val, chorei, chorei e deitei na cama. Eu estava com muito medo. Não queria parir ainda. Não estava preparada para deixar de estar grávida. Respirei. O que era aquilo? Será que tudo ia começar? Ou era apenas mais um susto? O sangramento havia sido pontual. Liguei para a Fabiolla que tentou me acalmar. Eu tive um pouco de cólica, mas achei que era nervoso. Tentei acreditar que não seria nada enquanto a Fa instruía o Val sobre coisas que poderiam me acalmar. Ele foi buscar algumas coisas para mim e eu fiquei na cama, com medo de me mexer muito, tentando relaxar e acreditar que nada mais aconteceria. Não podia acontecer!

Pouco tempo depois, por volta das 12h15 eu estava deitada na cama quando sinto um gole de um líquido quente entre as pernas. Grito chorando: “Tá saindo mais, tá saindo mais sangue!” Era tudo indo embora naquela hora, tudo escorrendo das minhas mãos, da minha vontade. Foram segundos até eu perceber que não era mais sangue, era a bolsa que tinha estourado e o líquido aminiótico inundou tudo: a beira da cama, o chão logo abaixo, o caminho para o banheiro...

Tiro a calcinha e vejo o líquido claro. Estava tudo bem. Estava tudo mal. Junto com as águas da bolsa foram embora meus desejos de sair do repouso, de aproveitar mesmo por alguns dias a gravidez fora da cama, de sair pra passear com meu filho mais velho, de curtir a barriga, de parir tranquila e a termo. Não só isso, a Betina estava viajando. Com a bolsa rota eu sabia que meu parto não ia demorar mais que um ou dois dias pra acontecer. Eu não conseguia acreditar que eu ia parir e ela não estaria comigo. Triste e incrédula eu me deitei num pequeno colchão ao lado da cama e chorei muito, chorei de soluçar.

Foi desse colchão, deitada de lado, encolhida e chorando, que liguei para a Fabiolla de novo e contei que a bolsa tinha rompido. Ela perguntou se eu estava sentindo mais alguma coisa e eu disse que não, não haviam contrações. Ela conversou muito comigo, compreendeu minha tristeza, sugeriu que eu tentasse fazer algo gostoso, algo que fizesse eu me sentir acolhida, talvez ver um filme ou algo assim e que ela iria organizar as coisas dela para depois vir ficar comigo. Ela conversou com o Val e os dois me acolheram muito e eu lembro disso, apesar de naquela hora estar tomada de uma tristeza muito grande, que parecia que nada poderia tirar de mim.

Ainda deitada ali, na mesma posição, comecei a avisar algumas pessoas sobre o ocorrido. Eu avisei a Renata e a Silvia Kawata para que elas se preparassem pois eu imaginava que o parto poderia ser naquela noite. A Sil ia ficar com Iuri para mim no parto. Ela foi muito amorosa no telefone e se ofereceu para ir naquela hora ficar comigo, achei que não precisava, pois o Val estava comigo e eu sabia que ela estava trabalhando, então não quis atrapalhar. Eu estava meio transtornada também para conseguir pensar direito. Nessa hora eu também mandei uma mensagem para a Betina, imaginando que talvez o meu sonho estivesse certo e que ela poderia ainda estar em São Paulo.

A Elisa, amiga querida, entrou em contato comigo oferecendo um ouvido atento e qualquer ajuda. Ela estava organizando pra mim junto com as outras aquele chá de bênçãos que seria no dia seguinte e a Silvia a tinha avisado sobre o rompimento da minha bolsa.  Apesar de toda delicadeza e carinho oferecidos eu não quis conversar naquela hora, estava transtornada demais, apenas pedi que avisasse as outras pois nossos planos não aconteceriam mais. Foi super importante isso porque em todo processo (que foi depois preenchido por mais e mais solidão) eu senti que aquelas mulheres estavam comigo e isso me ajudou, sem elas mandando boas energias lá do outro lado tudo teria sido ainda mais difícil.


O QUE É ISSO QUE ESTOU SENTINDO?

Eu fiquei nesse pequeno colchão um tempo, sem contrações. Um tempo depois (algo entre 13h e 14h) eu noto que algumas cólicas fracas que eu estava sentindo estavam vindo com algum ritmo. Val observa. Tentamos contar mas não conseguimos, mas ele disse que os intervalos estavam curtos, uns dois minutos ou três e que elas estavam durando um bom tempinho. Sabendo disso, a Fabiolla disse que iria se organizar e já viria ficar comigo. Desligamos o telefone ainda com a missão de tentar contar as contrações que estavam muito suaves.

Foi mais ou menos aqui que a nossa ideia de tentar almoçar antes de engrenar o trabalho de parto foi para o espaço pois, de repente, veio uma única contração forte, senti uma pressão na parte de trás do períneo, como se algo empurrasse ali. Levanto pensando que estava com vontade de ir ao banheiro. Sento na privada e a vontade passa, mas eu percebo que tem alguma coisa descendo pela minha vagina. Estranho... O que seria aquilo? Pensei que poderia ser o cordão, o que configuraria uma situação muito rara, mas bem séria. Deito na cama e peço para o Val olhar.

- É uma coisa meio branca – ele fala

Ele liga para o Braulio para contar. Braulio era o médico que estava de backup na ausência da Betina. Ele disse que pela descrição poderia ser algum pedaço da bolsa, que tinha estourado. Falou que iria para o consultório e que nós poderíamos ir para lá também, pra ele dar uma olhada.

Eram 14h03 quando avisei no grupo de whatsapp que as contrações estavam longas e frequentes (embora quase sem dor). Eram 14h05 quando avisamos que iríamos ao consultório porque algo estava saindo.

Depois disso continuei deitada na cama. Contrações muito fracas. Não lembro muito bem dessa parte, estava tudo muito triste e nebuloso. Sei que logo sinto vontade de ir ao banheiro de novo. Ao sentar na privada a bacia se abre e sinto aquela coisa descendo ainda mais. Coloco a mão. Era grande e duro demais para ser a bolsa. Era estranho porque não voltava pra dentro mas também não terminava de sair. A ponta era dura, do tamanho das pontas dos meus dedos da mão agrupados. Peço para o Val olhar de novo, desta vez na privada, já que a posição favorecia.

Ele traz o celular para fotografar e logo sai correndo sem falar uma palavra, com o celular, para ligar para o Braulio lá do quintal, me deixando ali sentada, sem saber de nada. Pensei: “Pronto. É o cordão.”

É estranho porque não fiquei apavorada. Tive um pouco de medo sim, mas acho que a tristeza tinha me tomado de tal forma que começava a se transformar em apatia. Esperei.

Ele então volta do quintal com o telefone e diz:

- Deita! Tá tudo bem!

Olho intrigada e penso de novo que era o cordão. Enquanto deito meio triste, meio entregue ele se lembra de me contar:

- Ah! (...) Não é o cordão! (...) É um pé!
- Um pé?
- Um pé!
- Você mandou a foto e ele falou que era um pé?
- Não precisou. Eu vi as unhas!

Eu acho que não senti nada quando soube que era um pé. Foi uma sensação muito estranha de - NADA. Um pouco de surpresa talvez. O primeiro bebê estava cefálico desde as 26 semanas mais ou menos. Em 80% das gestações gemelares o primeiro bebê fica cefálico e o nosso estava assim, o que era ótimo para o parto. A gestação inteira eu havia pedido, mentalizado, torcido para que ele ficasse assim. Eu estava para fazer um ultrassom exatamente na semana que entrei em trabalho de parto, mas não havia conseguido marcar. É muito interessante porque eu não queria fazer esse ultrassom, estava tentando marcar a contragosto, ligava para o laboratório, mas sem vontade que desse certo. Não deu. Eu não fiz o exame e, quando esperava uma cabeça, apareceu um pé!

Eu tenho certeza absoluta de que foi melhor não saber. Na hora que os dedinhos apareceram, ainda em casa, eu estava tão tomada por outros sentimentos que aquilo não me tocou em nada. Talvez tenha sido até um alívio, já que a hipótese na minha cabeça para aquela coisa saindo era o cordão umbilical. Bem melhor ser um pé.



Com a nova notícia o Braulio achou melhor a gente se encontrar no hospital. A mala da maternidade não estava pronta e, a partir desse momento, veio um período meio estranho, mas meio morno. No começo o Val parecia estar com pressa e eu tentava pensar e dizer onde ele encontraria minhas roupas, para por na mala junto com as coisas dos bebês, que eu já havia preparado. Logo nos demos conta que não era uma sangria, que dava pra arrumar mala, documentos e carro com calma, as contrações estavam bem fracas e nós também não queríamos chegar antes do Braulio no hospital. Na verdade eu não sei bem se me dei conta de que não precisava correr ou se simplesmente, como eu estava em outra dimensão de sentidos e sentimentos, estava sem vontade nenhuma de sair de casa. Enquanto ele arrumava tudo eu fiquei deitada, bastante apática e praticamente sem dor.

Pouco antes das 14h30 entro no carro para ir ao hospital. Val deitou o banco da frente e eu fui deitada. As contrações aconteciam mas estavam realmente bem fracas, como cólicas suaves. Eu estava muito triste e entregue, acho que o sentimento me tomava de tal forma que não sobrava muito espaço para as contrações.

Do carro avisamos no grupo de whatsapp que estávamos indo para o hospital porque estava saindo um pezinho. No grupo estavam a Fabiolla, a Renata e as duas Sílvias (amiga e pediatra). A Fabíolla já estava a caminho e a Sílvia pediatra também. Pedi à Renata que fosse pra lá. Eu na verdade deveria ter pedido para ela vir antes, mas estava tão perdida em mim que não conseguia pensar e fazer essa ponte.

A verdade é que aquilo não parecia um trabalho de parto começando, 
parecia um caminhão atropelando a gente.

No caminho a Sílvia pediatra perguntou várias vezes se depois de sair o pé havia acontecido mais alguma coisa, se estava estável e tal, mas ela ficou sem resposta e confesso que só vi essa mensagem dias depois. Na verdade, fisiologicamente, as coisas estavam bem paradas nessa hora.


GEMELAR DE PÉ PRA FORA – A EXPERIÊNCIA NO HOSPITAL

Chegamos por volta das 14h40 na frente do hospital e Val parou o carro na rua para esperarmos o Braulio chegar. Ainda bem que ele lembrou disso! Eu dizia desde a primeira consulta que não entraria naquele hospital sem a Betina me acompanhando desde o lado de fora, pois sabia de relatos bem ruins com os plantonistas antes do médico particular chegar, ou até enquanto estava se trocando. Nossa espera não durou um minuto, vimos o carro do Braulio e entramos logo atrás.

Ele já havia ligado para o hospital avisando que estávamos chegando. Quando paramos o carro eu abri a porta e uma enfermeira veio com tudo: mão esquerda no meu ombro, mão direita de luva no meio das minhas pernas “Eu vou te examinar”. 

Ao mesmo tempo que eu rejeitava o toque o Braulio apareceu do lado dela e disse algo como: “Não toque por favor, ela é minha paciente”. Só ouvi ela retrucando:

“Mas doutor! É um gemelar de pé pra fora!”

“Eu sei, fui eu que liguei avisando vocês que a gente ia chegar.”

Veio uma maca e eu deitei lá de qualquer jeito. Vestido amassado, peito meio saindo, sem calcinha... Eu não sentia nada de contrações. Começaram a correr comigo na maca. Olho pro Braulio:

“Não me deixa sozinha?”
“Eu não vou sair do seu lado”

Enquanto entrávamos, outra enfermeira do hospital falou enquanto empurrava a maca:

“Vai ser cesárea né doutor?”
“Não, por que seria?”
“Ah... Não sei... Um gemelar de pé pra fora...Vou preparar a perneira então!”
“Não precisa, não vou usar. (...) Eu nunca vim aqui, vocês não me conhecem, mas você vai ver que eu faço tudo diferente.”

É muito estranha essa coisa de hospital. A gente se sente um pedaço de carne. A conversa segue sobre nós, mas sem que ninguém nos olhe. Parecia que eu não estava ali. Para os profissionais do plantão meu nome era “gemelar de pé pra fora”. Triste, muito triste.

De repente eu olho para trás e Braulio e Val tinham sumido. A enfermeira entra comigo na sala de pré parto. Segundos de pânico até eles aparecerem de novo, já paramentados. Eu nem desço da maca e vamos para o centro obstétrico. Braulio me explica que como o pé já estava no canal já era considerado período expulsivo.

Na sala do centro obstétrico começa uma nova fase do trabalho de parto. Lembro de Braulio pedindo para encostarem a cama com perneiras e dizendo que íamos usar a maca mesmo. A sala era cheia de aparelhos e objetos de hospital e nenhuma janela. Para quem pariu em casa, era um lugar totalmente sem sentido. Definitivamente eu não queria estar ali, mas era a minha realidade, então arranquei o vestido e me “posicionei” para o parto.

Eu sabia que a posição de quatro apoios era boa para partos pélvicos e não pensei muito para assumi-la. Pediram para que eu me apoiasse na parte elevada da maca e eu obedeci. O Braulio pediu para apagarem a luz e eu lembro que falei:

“Não precisa, eu gosto claro.”
“Mas é bom, até para os bebês, que esteja apagada.”

E apagaram a luz.

Percebi que mesmo apagadas as lâmpadas o ambiente continuava bem claro e achei ok, apesar de ter me sentido ignorada nessa hora. Às vezes parece que tudo é feito no automático, seguindo uma receita de bolo e não se percebe que por trás daquele corpo de mulher existe uma história, um tanto de medos e uma revolução. Ninguém ali era obrigado a conhecer meus desejos, afinal ninguém ali me conhecia, mas só eu sei a energia que despendi para conseguir comunicar uma simples preferência, e ela não foi nem olhada.

Nos minutos que se seguiram o Braulio me falou que eu podia ficar tranquila pois ele e a Betina estudavam bastante parto pélvico e estavam acostumados a atendê-los. Ele me apresentou a Barbara, a obstetriz que ele havia chamado para o meu parto e ela veio me falar oi. A Sílvia pediatra chegou e se apresentou a mim. Nunca vou esquecer que ela se ofereceu para que eu segurasse nela se precisasse, algo muito atencioso e incomum de ouvir de um neonatologista, que costuma ter o foco só no bebê. Até no whatsapp ela pedia que eu respirasse e conversasse com ela. Foi realmente uma feliz surpresa ter a Sílvia no meu parto e, de alguma forma, embora eu a estivesse conhecendo ali, naquele momento, ela era a única pessoa da minha equipe que estava comigo naquela hora, e esse olhar foi importante.

Lembro também de umas três enfermeiras do hospital me perguntarem se podiam ficar ali, para ver o parto. Eu concordei, já não fazia diferença mesmo...

Enquanto eu estava de quatro, apoiada sobre a maca, as contrações voltaram e começaram a doer um pouco mais. Devo ter ficado ali quase uma hora. Nesse tempo, pouco aconteceu do lado de fora, mas muito aconteceu internamente.



Lembro que logo no começo o Braulio disse que parto pélvico, era bom que não demorasse muito para nascer. Ele também pediu que as enfermeiras do Sepaco colocassem um acesso em mim e explicou que, às vezes, o parto pélvico pode exigir uma intervenção rápida e que deixaria o acesso pronto por esse motivo. As enfermeiras tentaram colocar o acesso em mim umas três ou quatro vezes, mas minhas veias estavam difíceis e cada vez que elas iam tentar vinha uma contração e elas se afastavam. Uma hora elas pararam de tentar, talvez tenham esquecido, não sei... Confesso que percebi e achei bom porque não queria ser furada.

Além disso lembro da Barbara de vez em quando indo auscultar os bebês. Lembro de ter pressa e olhar para trás e ver o Braulio aparentemente muito tranquilo, talvez a pressa não fosse tanta assim. Lembro que em determinado momento ele pediu um aparelho de ultrassom para confirmar a posição do segundo bebê. Ele continuava pélvico, como esteve a gestação inteira, nenhuma surpresa nessa hora.

Isso do lado de fora. Dentro de mim, porém, uma batalha se fazia. Na minha cabeça duas vozes se contrapunham:

“Essas contrações estão muito fracas, isso não está funcionando”
“Quero que pare. Quero deitar e chorar um pouco”
“As contrações precisam vir mais fortes, ou ele não vai nascer”
“Não. Não quero mais forte. Já está doendo bastante. Não vem mais forte por favor!”
“No parto do Iuri doía muito mais. Vou gritar para ver se ajuda a intensificar as contrações”
“Quero deitar. Quero colo. Quero chorar”
“Quanto mais tempo demorar para nascer maiores as chances de não conseguir parir. Preciso focar neste parto!”
“Estou cansada! Está doendo!”
“Eu aguento. Eu aguento muito mais que isso!”
“Eu não quero. Não era para eles nascerem hoje. Eu estou tão triste...”
“Eu estou parindo de novo. Esperei tanto por este momento. É um momento único, vai passar. Eu preciso aproveitar. Eu preciso viver o parto, e não ficar negando. É o meu parto. Está acontecendo agora, eu querendo ou não. Eu estou feliz de estar aqui.”
“Eu estou cansada, muito cansada, e triste, e sozinha”

No geral, eu sentia muita vontade de deitar de lado, me encolher com a cabeça no colo de alguém e chorar. Eu queria receber carinho. Só isso. Esse sentimento me tomou de tal forma que é difícil até hoje (meses depois) escrever sobre ele. Parece que eu sinto tudo de novo.

Quem vê uma mulher parindo não tem 
ideia da revolução que acontece lá dentro.


Nessa hora eu também me senti muito, muito sozinha. Não entendia porque a Fabíolla não tinha chegado se ela já estava a caminho há tanto tempo. Esperava logo ver a Renata e sentia muita, muita falta do olhar da Betina.

Quando eu comecei a gritar a Barbara tentou me orientar, para que eu direcionasse o grito para baixo, tirando ele da garganta. Eu já havia pensado nisso pois me lembro da Marília (doula do meu primeiro parto) me ensinando a mesma coisa anos antes. Acontece que desta vez eu não conseguia. A barriga estava tão grande que eu não conseguia sentir sua base e toda vez que tentava sentia um mal estar no estômago. Aquilo não estava dando certo.

Em algum momento o Braulio me apresentou uma médica chamada Andrea, disse que trabalhava com ele. Lembro bem dos olhos dela logo abaixo da touca e de eu não ter entendido bem porque tinha tanta gente desconhecida ali e eu continuava sem as pessoas da minha equipe.


CANSAÇO, MUDANÇA E CORAGEM

Comecei a ficar muito cansada. Aquela posição não era confortável pra mim. Lembrei que eu gostei muito de ficar em quatro apoios no parto do Iuri, mas eu estava no chão, no chuveiro, no canto que tinha escolhido ficar e não sobre uma maca no meio de uma sala de hospital. Percebi que fazia mais sentido para mim estar com as mãos na mesma altura dos joelhos, e tentei mudar de posição, mas logo alguém me “corrigiu”. Disseram que era melhor a posição anterior pois era mais verticalizada. Eu não tinha energia suficiente para falar nada, obedeci, voltando à posição desconfortável de antes. Eu me sentia assim, dividida entre o meu sofrimento interno, minha solidão, minha busca intuitiva por encontrar um jeito de dar conta (física e emocionalmente) daquele parto e a obediência às instruções que chegavam.

Exausta emocionalmente e sem notar progresso (continuávamos com o mesmo meio pé pra fora) eu pedia para sentar. Por uma ou duas vezes ouvi alguém me lembrar que o pé do bebê estava ali, então como eu poderia sentar? Ia sentar sobre ele! – diziam. Eu me conformava.

Em algum momento o Braulio disse que eu poderia por a mão e sentir o pé que estava saindo. Foi bom ele ter falado isso, eu não teria lembrado sozinha e foi especial poder sentir aqueles dedinhos espremidos saindo de mim, um monte de bolinhas juntas. Eu também lembro de algumas vezes que o bebê mexeu a perna e eu senti um incômodo, era curioso, mas tinha algo bom em sentir meu bebê mexendo...

Eu não estava mais aguentando ficar ali, pedi para sentar de novo e, nessa hora, o Braulio sugeriu a banqueta. Eu ainda perguntei:

“Mas não é ruim pra parto pélvico a banqueta?”
“Posição boa é a posição que nasce” respondeu ele

Arrumaram a banqueta ao lado da maca, Val sentou atrás de mim me dando suporte como no parto do Iuri, Braulio na minha frente e Barbara por ali. Ainda pensei: “Cadê a Fabíolla e a Renata? Acho que não vai dar tempo de ninguém chegar”

Mesmo assim eu pensava que ia ficar na banqueta só umas três ou quatro contrações até descansar um pouco e voltaria para a posição anterior, de quatro apoios, mas não foi o que aconteceu
.
Na banqueta as contrações vieram mais fortes e foi muito importante para mim ter o Val comigo e poder me apoiar nele. Comecei a me sentir mais forte e um pouco animada. Finalmente eu sentia o bebê descer um pouco. De meio pé fomos para um pé inteiro para fora, a tristeza ainda era presente mas estava naquele momento em suspensão. Eu estava fazendo um trabalho muito importante ali e, finalmente, me senti encorajada.

O Braulio pediu pra examinar para ver se o outro pezinho estava vindo junto ou não, ele estava e logo apareceria. Continuei me concentrando. Eu me sentia bem. Me sentia mais forte! Ele estava vindo!


DUROU POUCO

Eu não sei quanto tempo fiquei na banqueta, mas não chegaram a 10 contrações, bem próximas umas das outras já. Na verdade eu acho que foi metade disso. A certa altura nesse curto espaço de tempo eu vejo eles auscultando e algo me chama a atenção. Olhei o número e olhei para o Braulio. Ele fala:

“Paula, ele está com os batimentos alterados (ele disse acelerados ou desacelerados, não tenho certeza qual). Ele precisa nascer rápido.”

Já estava vindo uma contração. Eu estava meio grogue com aquilo tudo. Aquele atropelo. Aquela tristeza. Aquela energia de expulsivo. Aquela notícia. Tudo junto. Não tenho certeza se nessa hora alguém sugeriu que eu me concentrasse e fizesse força.

A contração veio. Veio e me tomou, estava forte, mas ele não nasceu. Então escuto o alvoroço ao meu redor, estava acontecendo ali, a centímetros de mim, e ao mesmo tempo estava tão longe, tão em outra esfera...

“Traz a ocitocina! Cadê o acesso?”
“Ai doutor a gente não colocou...”
“Como não colocou? Eu falei que era para por o acesso! O material da cesárea está pronto?”
“Está! Está tudo pronto doutor!”

Viro para a Barbara do meu lado que foi onde senti presença e aviso que estava vindo outra contração. Ela responde, doce e convicta:

“Se concentra e faz toda força que você puder. Vai dar certo!”
“Não vai dar, falta muito ainda”  eu disse desanimada de novo (a gente só tinha só um pé pra fora até aquele momento)
“Dá sim. Se a gente está falando que é possível é porque é. Se concentra e vai!”

Braulio quando viu que já vinha mais uma contração falou:

“Paula, ele tem que nascer AGORA!”

Eu meio zonza. Respirei e senti a contração chegando. Naquele momento decidi tentar, mesmo sem qualquer convicção de que daria certo. Decidi tentar para saber que eu tinha feito o possível, mas estava certa que seria operada nos próximos minutos. Empurrei como quem se despede do seu último parto. Estranhamente eu não me importava muito.

Eu comecei empurrando muito forte até que uma onda de força veio e tomou conta de mim. Eu não precisava mais empurrar, meu corpo era apenas passagem para aquela força que me atravessava.

Nada no mundo é mais forte do que parir um filho.


DOIS METROS DE MEIO DE UM PEQUENO BEBÊ

Eu senti muito bem quando a parte larga do corpinho entrou no canal de parto. Doeu muuuiiiito! Doeu o canal inteiro e não só o círculo de fogo. E não acabava. A impressão que eu tinha é que estava saindo dois metros e meio de bebê ali. Em algum momento eu olho e vejo o Braulio segurando um bebê todo branco, bem esticado. Ele apoiava o tronco e os pezinhos enquanto o final terminava de nascer. Na hora da cabeça perdi a visão de novo. Doeu transcendentalmente. Absurdamente. Lindamente.

Meu primeiro bebê nasceu em uma força só, algo que parecia impossível para mim um minuto antes. Braulio me entrega ele e eu pego com as duas mãos. O primeiro pensamento foi de que ele parecia um bichinho daqueles filmes de ficção, aqueles saídos de casulos. Ele tinha tanto vérnix que a cabeça parecia uma bola branca sem grandes definições. (quando Iuri nasceu eu achei que ele tinha vérnix, mas não tinha, isso sim era vérnix!) Seguro ele. “Como é pequeno!” eu penso. Veio molinho, mas em segundos recuperou o tônus, retraiu os membros, mexeu a cabeça e do meio daquele monte de vérnix se abriram dois olhinhos, e ele me olhou.
“Como você é lindo!” consegui verbalizar

Logo que peguei também vi que era um menino. A gente não sabia o sexo dos bebês antes do parto mas, como no sonho que tive na gestação, eu não dei importância nenhuma ao fato. Simplesmente não importava que sexo tinha.



Foi assim que chegou ao mundo meu primeiro gemelar, meu segundo filho, aquele que quase duas semanas depois receberia o nome de Dimitri, nome difícil de decidir e definido por fim pelo seu irmão mais velho, Iuri.

Ele que na barriga era o mais agitado, ele que foi meu parceiro na gestação, ele que resolveu desvirar na última hora, que resolveu vir antes e pelos pés. Ele que veio lutando, forte como eu sabia que era. Ele que logo dobraria de tamanho e que se manteve careca e vermelho como no sonho que tive. Não era uma menina, mas era ele, exatamente como eu havia sonhado, bravo e objetivo.

Apesar de tudo que eu vivi nesse parto e de toda tensão para ele nascer em nenhum momento eu temi pelo bem estar dele. Eu sentia que ele estava bem. Sabia que ele dava conta. Sentia isso e de fato ele nasceu ótimo, respirando muito bem e sedento para mamar.


TEM UM INTERVALO?

A emoção foi enorme. Tanta coisa misturada... Mas nesse momento eu estava também feliz. E cansada. E preocupada com o segundo bebê. E leve. E cansada mesmo.

Fui para a maca com o meu bebê 1.

“Quero descansar um pouco”

Não era só do gasto de energia e líquidos que eu queria descansar. Não era da força ou da dor tampouco. Eu precisava deitar e assentar tudo que tinha acontecido comigo. Eu precisava respirar, olhar para meu bebê e me preparar para o próximo.

“Não esquece que você tem outro aí dentro” alguém falou
“Eu sei, mas agora deve ter um intervalinho”

O segundo bebê foi auscultado, estava tudo bem com ele. O primeiro estava no meu peito, do lado esquerdo como sempre esteve, e logo começou a mamar. Eu olhei brevemente para aquele rosto franzido.

"Olha! Está mamand..." Fui interrompida por uma contração

"Nossa, mas já?" Outra. Mais forte!

"Melhor cortar o cordão" lembrou Silvia, já providenciando.

"Tá muito rápid..." UOOOOOORRRRR

"Alguém segura esse bebê!!!!"


Alguém pegou ele no mesmo instante em que uma força muito grande tomava conta de mim. Senti o bebê entrar no canal. Foi muito, muito intenso, uma dor imensa. Parecia que eu estava sendo partida ao meio. De novo a sensação de que saía dois metros e meio de criança. Igual o irmão, mas nitidamente mais largo.

Gritei muito alto enquanto me agarrava à cintura da Barbara que era quem estava à mão na hora. Acho que por pouco não quebrei ela no meio. A sensação que tive era que estava saindo bebê, útero, intestino, fezes e a alma junto. Era como se eu estivesse sendo virada do avesso.

Senti um volume maior saindo, depois outro. A contração acabou e eu tive – por fração de segundo - a sensação de que tinha terminado, mas escuto Braulio:

“Continua! Continua fazendo força que falta só a cabeça!”

Como assim falta a cabeça? E aquelas duas partes que eu senti saindo, não era o corpo e a cabeça então? Eu penso enquanto respondo:

“Não dá! A contração acabou. Não tem força agora”

Eu estava tranquila. Ele tinha vindo muito rápido e achei que esperaríamos a próxima contração para que ele terminasse de nascer, mas Braulio por algum motivo não pensou assim e, como eu não podia empurrar naquele momento, fez uma manobra para que a cabeça saísse.

Me deu a impressão de que ele movimentava o bebê para cima e para baixo como uma alavanca. Senti uma dor enorme e a cabeça saiu. Doeu tanto, tanto que mesmo depois de sair continuou doendo muito por alguns segundos. Foi nesse momento, no meio dessa dor, que escutei Braulio levantar a voz pela primeira vez, num som engraçado, quase de alívio:

“Há! Olha só o que é!”

Doía tanto ainda que eu não conseguia olhar. Quando ouvi ele falar isso olhei bem rápido enquanto colocavam o bebê sobre a minha barriga e tive a primeira visão do segundo bebê: um pequeno pênis com um saco enorme.

Fecho os olhos de novo e espero passar a dor. Quando consigo finalmente olhar para ele, ele já estava lá, de olhos bem abertos me olhando fixa e misteriosamente. Mais um menino. Meu terceiro. Mais uma vez o sexo não pareceu importante.

MIRO




Ele estava apoiado do meu lado direito, mas bem embaixo pois o cordão era curto. Como não alcançava o peito não podia mamar ainda, assim a gente ficou por um bom tempo só se admirando.

Lembro de olhar muito muito para aqueles olhinhos pequenos e inclinados, de seguir com meus olhos o desenho da suas pálpebras, de me admirar com a delicadeza de seu nariz, com a pele lisinha e o semblante tão doce, tão sereno. Eu já tinha fotografado um bom tanto de RNs, eu já tinha parido outros dois filhos antes dele, mas eu nunca tinha visto um recém-nascido tão lindo em toda a minha vida. 

E ele me olhava! Ah... me olhava tanto! Nenhum dos irmãos fez isso. Foi naquela sala e por causa desse olhar que eu pensei pela primeira vez que ele poderia se chamar “Miro”, e assim foi. Tinha que ser.

Val me contou depois que Miro começou a sair dentro da bolsa. Aliás, ele disse que primeiro saiu a bolsa, translúcida, como uma bexiga cheia de água, depois essa bexiga ficou rosa (era o bebê descendo e preenchendo seu espaço, dentro da bolsa mas fora de mim. Isso explica porque senti duas formas grandes saindo do meu corpo e nenhuma delas era a cabeça ainda. Quando a bolsa estourou Miro já estava com pelo menos metade do corpo para fora.

Deve ter sido uma visão incrível, mas eu não pude ver. Infelizmente a Renata não tinha conseguido chegar na sala ainda. Ela entrou uns 10 ou 15 minutos depois do segundo bebê nascer. Lembro que olhar para os seus olhos por baixo daquela touca de hospital me fez sentir uma sensação de acolhimento quentinho, um alívio compartilhado, a primeira sensação de carinho e colo que eu senti naquele dia. Como se, finalmente, meu pé encontrasse o chão naquele turbilhão todo. Eu encontrei minha casa, encontrei um abraço, encontrei a sustentação que eu tanto tinha procurado, tudo naquele olhar. Por alguns minutos eu até esqueci que ela estava ali para registrar o parto. Não... ela estava ali para muito mais!

Depois a Renata seguiu fotografando, enquanto a gente namorava os bebês, ainda na maca. De tempos em tempos a Sílvia vinha ver se o cordão do segundo bebê tinha parado de pulsar. Isso aconteceu algumas vezes e o cordão permanecia lá, azul e pulsante, mandando mais energia para meu caçula. Depois fiquei sabendo que foram uns 40 minutos até que ele parasse de pulsar e o Val pudesse cortar o cordão. Mais um detalhe especial desse nascimento. Finalmente Miro veio para o peito e mamou um pouco também.

Depois do corte do segundo cordão senti umas cólicas bem chatas e logo a placenta saiu. Colocaram ela numa bandeja e a Rê fotografou para mim. Bárbara se ofereceu para levá-la para o consultório para eu pegar depois, assim ficaria no freezer. Aceitei.



PÓS PARTO NUM HOSPITAL

Nos minutos seguintes fiquei lá com meus dois bebês um em cada peito mamando. Foi muito especial. Por um lado eu estava toda desajeitada sem nenhuma mão livre, por outro, não queria dar nenhum deles para ninguém. Eram os dois meus, tinham que estar comigo, como estiveram nos oito meses de gestação. O primeiro continuava do lado esquerdo e o segundo do lado direito, como sempre estiveram. O primeiro era mais miúdo, mamava decidido, escondido atrás da mãozinha ou de olhos fechados. O segundo era mais terno, olhava mais que mamava, estava vidrado em mim. A imagem que tenho guardada daquele conjunto de olhos e nariz, tão pequenos e perfeitos, nenhuma foto conseguiu captar, mas ficou esculpida na minha memória, de um jeito muito forte.

Eu estava assim quando a Fabiolla chegou. Gostei muito de vê-la. Acho que meu olhar para ela naquele momento foi: “Eu consegui Fa, deu certo!” e foi o que eu senti do olhar dela para mim também. Tinha dado certo. Eu tinha parido meus dois bebês gêmeos. Num hospital. Antes da hora. Pélvicos. Mesmo sem a equipe que eu tinha escolhido. Tinha sido tão difícil! Tem sido tão difícil ainda lembrar de tudo que senti naquele dia. Eu ainda tento entender. Eu ainda choro. Mas naquele momento em que a Fabiolla entrou na sala eu sentia alegria. Eu tinha conseguido.

Eu soube então que tanto ela quanto a Renata tinham chegado a tempo de acompanhar o parto. A Fabiolla (e sua backup que também chama Fabiola e também é uma querida) chegaram pouco depois da gente e ficaram presas na recepção do hospital por duas horas sem que as deixassem subir. Elas passaram a maior dor de cabeça e eu fiquei sozinha, sem o apoio de quem eu tinha escolhido, sem o olhar e o carinho que eu precisava. Dói muito pensar que aquela solidão toda que senti não precisava ter acontecido. Disseram para elas que tinha gente demais na sala. Gente demais! Gente demais que eu não tinha escolhido pra estar lá. Não faz sentido nenhum. A Renata chegou depois mas ainda a tempo e já foi liberada para subir (embora tivesse gente demais na sala para a Fa) mas também não conseguiu chegar pois a enrolaram tanto nos corredores que ela podia me ouvir, sabia onde eu estava e não a deixavam chegar até mim. 

Isso é o hospital. Isso é a lógica dos protocolos. Dos curiosos. Dos casos interessantes e sem nome. Esse era o gemelar de pé pra fora que ficou comentado nos corredores naquele dia, onde ninguém viu que quem paria era uma mulher. Uma pessoa que tinha suas dores, seus medos, que já estava sem a presença de sua parteira e que não precisava ter ficado também sem o apoio da sua doula e o olhar da sua amiga fotógrafa, escolhidas tão cuidadosamente. Até hoje é difícil entender por que eu tive que estar tão sozinha e ao mesmo tempo entre tantos estranhos.

A Sílvia pesou os bebês. O segundo nasceu com 2500g e o primeiro com 2175g. Pequenos e fortes, como eu imaginava. Seguimos ali. Escuto Braulio fazer umas piadinhas sobre ocitocina e time de futebol. Penso na Betina, queria tanto que ela estivesse ali. Barbara pede pra tirar uma foto e mandar pra ela. “Claro, pode tirar.” Renata pergunta se pode mandar uma foto para as mulheres do grupo do chá de bênçãos. “Sim, por favor” Eu penso nelas e em toda energia que senti por elas existirem, por estarem conectadas entre elas e comigo. Não seria a mesma coisa sem essa rede. 

Vejo Braulio discutir um pouco com a enfermagem porque não conseguia os papéis para assinar e poder ir embora, alguém o esperava. Val foi preencher minha internação. Os pés dos bebês foram carimbados numa folha cheia de dados que eu só veria depois. Todo esse processo é meio chato, coisa de hospital. Ai que vontade de ir para minha casa, tomar banho...

A propósito, um pouco antes eu havia sido examinada. Nenhuma laceração. Eu estava bem. Braulio falou que depois de umas seis horas eu poderia tomar banho.

“Seis horas? Mas eu estou ótima!”
“Nove entre dez mulheres tem tontura logo após o parto” ele disse “Será que você é 1 entre 10?”

No parto do Iuri eu fui. Eu tomei banho logo em seguida. Depois comemos. Depois ainda levei a Marília e a Betina até a rua e me despedi. Era estranho ouvir essa estatística agora, mas esperei. 

Quando finalmente algumas burocracias foram resolvidas fizemos uma foto com todos e eles foram embora. Falei pra Rê e para a Fa que podiam ir também, senti que elas estavam na dúvida, mas já tinham feito tudo que podiam. 

Sílvia ficou conosco. Lembro da enfermeira conversando com ela:

“Agora eles vão pro berçário tomar banho né doutora?”
“Não! Ninguém aqui vai tomar banho. Banho pra quê?”
“Ah... não sei... Mas então vai só pra tomar o leite então né?”
“O quê? Leite? Você tá querendo me matar? Não! Os bebês estão mamando, estão com a mãe, ninguém vai para berçário nenhum!”

Lembro da enfermeira confusa, mas o importante foi que respeitaram as recomendações.

Falando em recomendação, a Silvia deixou uma prescrição cheia de “Nãos”:

Não tirar do quarto
Não vacinar
Não dar leite artificial
Não dar banho
(...)

É incrível precisar de um documento assinado por médico pra ninguém furar, alimentar ou lavar seu filho... Pra não levarem-no de você. Quanto mais eu penso mais eu acho absurda a lógica hospitalar. Quanto mais eu lembro mais me sinto grata por ter tido profissionais que nos defenderam de protocolos tão estúpidos, e Sílvia e Braulio foram certeiros.

O tempo foi passando e logo eu comecei a sentir muita fome, já passava das 18h e eu não tinha nem almoçado. Na sala do centro obstétrico em que estávamos era proibido comer. Não havia previsão de quando nos liberariam para irmos para o quarto, então não havia previsão de refeição para mim. 

A prática no hospital é assim: após o parto eles separam a mãe do bebê, o bebê vai tomar leite artificial no berçário e a mãe vai pra sala de recuperação, onde pode tomar soro na veia para se alimentar. Nisso passam-se cinco, seis horas de separação, às vezes bem mais. É um absurdo sem tamanho. Onde está o senso de lógica dessas pessoas? - eu me pergunto. 

Como a gente não queria se separar e não havia quarto pra mim nós ficamos lá, sem comida. Só não desmaiei de fome porque uma boa e anônima alma contrabandeou comida para mim naquele lugar. Eu comi escondido, uma coisa muito louca, e agradeço imensamente.

Depois disso deixei os bebês com o Val e fui tomar um banho no pré parto acompanhada de uma enfermeira. Que diferença do banho que tomei depois do parto do Iuri! Ela me levou mas eu tomei banho sozinha, por algum motivo ela não podia me ajudar. A ironia é que desta vez eu precisava, Braulio estava certo e eu realmente senti tontura ao levantar e tomei todo o cuidado do mundo pra não cair, mesmo tomando banho sentada. Foi chato, mas tudo bem, me senti bem melhor depois do banho. 

Voltei para a sala do parto, felizmente ou infelizmente tinham esquecido a gente lá. Mas o que importa é que os bebês estavam bem, nos nossos braços, então podíamos esperar.

Perto das 20h minha mãe ligou, pra saber se levava Iuri pra nossa casa ou se Val ia buscar. Foi nessa hora que contei do parto e disse que onde estávamos não poderíamos receber visitas e não sabíamos se chegaríamos no quarto a tempo pra isso. Pedi pra ela ficar com Iuri lá e não contar nada para ele por enquanto, se desse tempo eu avisaria para ela leva-lo pra conhecer os irmãos.

Subimos para o quarto só às 22h. Pedi a minha mãe que levasse Iuri no dia seguinte para nos encontrar. Por volta das 23h mandaram pra mim um leite e umas torradinhas, era a ceia, eu tinha perdido o jantar por incrível que pareça!



DO OUTRO LADO DA ESTRADA

Naquela noite Val foi comprar o absorvente pós parto que eu não tinha levado e eu aproveitei para contar do parto em dois ou três grupos que participo na internet. Só nessa hora, sozinha, consegui ouvir o recado de voz que a Betina tinha mandado pra mim algumas horas antes, quando soube do parto. Ela terminava com “... imagino que você também deve estar muito feliz”. Pensei o quanto me sentia estranha naquele momento. Feliz. Serena. Confusa. Dolorida em todos os sentidos. Fora do lugar.

Por algumas semanas as vezes ainda sentia como se tudo tivesse sido um sonho, que eu não sabia se era bom ou ruim. Naqueles dias eu queria que não tivesse acontecido ainda. Queria voltar e ter a chance de que fosse diferente, mas, ao mesmo tempo, me sentia aliviada pois tinha dado certo. Eu tinha parido os dois.

Naquela noite no hospital eu quase não dormi. Fiquei perdida na sisudez de Dimitri que dormia pesado e nos olhos abertos de Miro, tão despertos e atônitos quanto os meus. 

Esse tinha sido o final da primeira parte da nossa história. Ele aconteceu de repente, sem aviso. Foi violento, pesado, avassalador. Eu levantei pra atravessar a estrada e veio um caminhão, gigante, faróis altos, e passou por cima de mim. Quando passou deixou meus restos no asfalto, grudados, machucados demais. Me levantei toda torta e caminhei sem jeito até o outro lado. Lá estavam meus dois bebês. Não tinha volta. Era fazer uma nova mochila e seguir. Tinha mais estrada pela frente.

Mal sabia eu que eu logo viria um trator. E um tanque de guerra. E mais caminhão. Era o pós parto que começava, mas isso, como eu disse, é outra parte da história.






AGRADECIMENTOS

Aos meus filhos DIMITRI e MIRO, que escreveram esta história comigo. Que sempre que eu me sentia sozinha podiam me lembrar que não estava, que a gente estava junto. Pelas semanas de gestação, pelos movimentos na barriga, pela força e vitalidade que eu conheço mais a cada dia.

Ao meu filho IURI, pela paciência e doçura que teve ao conviver com uma mãe menos presente por um ano inteiro. Pelos livros que lemos juntos, pelas brincadeiras de lego na cama, por me falar que estava com saudades e que queria dormir grudadinho. Por ter tanto amor dentro de si e entrega-lo tão generosamente a mim e a seus irmãos.

Ao meu companheiro, meu amor VAL, pelas lágrimas da descoberta da gravidez, por ficar sem ar junto comigo no primeiro ultrassom, por respeitar os momentos que eu quis estar sozinha, por cuidar de mim quando eu estava na cama, por enfrentar tudo isso comigo, por amar meus filhos tanto assim.

A todas as mães de gêmeos que me acompanharam nessa jornada. Ao grupo de apoio “Parindo gêmeos”. Às conversas inbox com Renata, Tati, Carol, Grasi, Leila, Aline e Juliana. Por me darem forças para acreditar. Por me mostrarem tantos gêmeos nascidos de 38, 39 semanas. Não foi o caso dos meus mas foi importante ler esses relatos. Tantos outros relatos de partos naturais, inclusive entre os prematuros. Relatos de bebês que viravam na última hora, que nasciam pélvicos, que nasciam dentro da bolsa, que nasciam rápido ou devagar. Todas essas histórias me fortaleceram e hoje me sinto capaz de ajudar outras mulheres.

A todos que contribuíram financeiramente, seja comprando um número na rifa que fiz, seja em forma de presente ou compra de algum item. Eu nunca imaginava que poderia receber tanto apoio, de tanta gente! Foi uma surpresa boa e encorajadora em meu processo. Além disso, sem vocês nós não poderíamos pagar os profissionais que nos acompanharam e que foram imprescindíveis para que tudo desse certo. 

Aos inúmeros oferecimentos de apoio, serviços, palavras e muito mais que recebi de gente conhecida e desconhecida. Foi especial ver que tanta gente acreditava em nós.

Às mulheres especiais que formaram o círculo do meu chá de bênçãos. O chá não aconteceu, mas eu senti a energia de vocês comigo. ELISA pelo cuidado no preparo e comunicação comigo inclusive nos momentos mais frágeis, e a todas pela força e carinho.

À KÁTIA querida que me convenceu a fazer yoga de novo, pelo tempo que foi possível e que me ajudou tanto mais uma vez.

À SILVIA BRIANI que, além do carinho e apoio, veio em minha casa e aplicou a injeção de corticoide mais suave que eu poderia receber.

À LUCIANA, minha irmã, e FERNANDA BERTINATO, amiga querida que dividiram comigo o mesmo período de gestação e pós parto, além de tantas outras coisas.

À FABIOLA CASSAB pelo amor que não cabe nela, pela disponibilidade no parto, por ir ao hospital para que eu tivesse uma doula antes da Fabiolla Duarte chegar, por esperar lá por duas horas e no fim acabar indo embora sem poder me ver, pois mesmo depois de tanto tempo não me deixaram ficar com as duas. Obrigada pela ajuda inestimável no pós parto com a amamentação do Miro e com minhas dores, que você sabe enxergar tão bem.

À SILVIA KAWATA, amiga tão querida que topou cuidar do Iuri pra mim durante o parto. No fim não precisou pois pari em horário comercial mas mesmo assim você se ofereceu para vir ficar comigo no meio do dia. Amo você.

AO BRAULIO, médico que substituiu a Betina naquela semana que eu sei, foi bem cheia para vocês. Obrigada por me atender assim, de sopetão, uma mulher que você não conhecia, com absolutamente tudo saindo fora do esperado: GO viajando, parto prematuro, hospital estranho, primeiro gemelar que ninguém sabia que estava pélvico... Não deve ter sido simples nem confortável. Agradeço por ter me dado a chance de parir meus meninos, apesar de tudo isso.

À BARBARA, por ter me falado naquela hora, antes do Dimitri nascer, que era possível, que eu podia parir meu bebê naquela contração. Eu não acreditei, mas eu não esqueço. Obrigada também por estar à mão quando a contração do nascimento do Miro me tomou e por ter permitido que eu me segurasse em você. Me desculpa pela força, eu realmente espero não ter te machucado.

À SILVIA MAIA, pediatra, por ter topado me atender dias antes, sem me conhecer, por querer saber de mim, saber quem eu era, qual era a minha história. Por enxergar a mulher por trás do parto e cuidar de mim e não só dos meus bebês. Por cuidar tão bem deles. Por nos livrar dos protocolos absurdos do hospital. Por ser amável com Iuri no dia da alta e nas consultas dos bebês. Por ser tão cuidadosa com a notícia do diagnóstico do Miro e ter nos apoiado com tanta presença e tranquilidade na dificuldade com a amamentação dele nas primeiras semanas. Pela disponibilidade e sensibilidade com que me ouviu e conversou comigo quatro meses depois. Você foi uma feliz surpresa no meu parto, no meio de tantas surpresas difíceis de lidar você veio, surpreendentemente, pra deixar as coisas mais leves.

À RENATA, que se tornou tão amiga e tão importante nesse processo todo. Obrigada por escutar minhas inseguranças na gestação e compartilhar comigo sua experiência de mãe de gêmeas. Obrigada pela presença, pelo olhar, por ter acreditado em mim e na minha capacidade de parir meus filhos naturalmente. Obrigada por estar conosco no dia do seu aniversário, que meus filhos escolheram pra ser o deles também, seus olhos amorosos entrando na sala é uma imagem que eu não vou esquecer nunca.

À FABIOLLA DUARTE, que eu senti, no começo da gestação, que poderia ser minha doula. Obrigada por ser quem você é, por ter essa energia forte e amorosa, por essa sua ligação com a terra, com o ventre, com as entranhas. É difícil pra mim explicar o que eu sinto vir de você, mas era o que eu precisava ao meu lado. Eu sinto muito por você ter passado tudo que passou naquele hospital. Sinto por mim e por você. Queria voltar e mudar tudo, mas mesmo sozinha o turbilhão que passou por mim naquele dia e as coisas que eu senti me fizeram ter certeza absoluta dessa escolha, tão intuitiva, tão visceral. O seu cuidado comigo no pós parto foi de uma delicadeza sem tamanho. Tantos atropelos, tanta solidão, tantos momentos que eu perdi o ar e você me ajudou a respirar de novo. Nunca esqueço da história do círculo de veados e nem das perguntas de bruxa que você me fazia. Te amo minha amiga.

À BETINA, médica, parteira, pessoa que eu amo. Obrigada por cuidar da gente com leveza por toda a gestação. Pelos abraços na chegada, pelos sorrisos, pelos planos, medos e tristezas compartilhados. Obrigada por acreditar em mim desde a primeira consulta e caminhar ao meu lado, apostando comigo nesse parto. Eu não sei ainda o que falar da falta que senti de você quando tudo aconteceu. Foi imensa. Mas de alguma forma eu tenho entendido que você se fez presente mesmo na ausência. Talvez não na hora – que foi muito dura mesmo – mas no todo, nesse processo que eu ainda busco entender. Lembro com muito carinho e gratidão de como você me recebeu na consulta após o parto, num dia que eu estava tão mal. Lembro de como foi acolhedora, inteira, humana ali comigo. Obrigada por ser quem você é. Ter você ao meu lado nas duas gestações também foi a escolha mais intuitiva e mais perfeita. Acredito cada vez mais nessa coisa de intuição.