Sem querer deletei todo o antigo blog. O Quadrante Delta ficou ainda mais perdido no espaço... Através deste novo veículo retorno àquelas paragens. Refaço o caminho, reconheço o trajeto e, embora não possa recuperar o que já está perdido, o quadrante ainda reserva mundos inexplorados. Boa viagem!

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Mãe Especial

Quando a médica me disse que meu filho tinha síndrome de down eu desabei num precipício e chorei por dois dias. Eu nem sabia dizer exatamente porque estava chorando, mas no primeiro dia eu só chorei. A consulta foi às 11h, ele tinha 7 dias e eu havia conseguido ficar um pouco feliz apenas desde o dia anterior depois de um parto difícil e prematuro. Lembro que, depois da notícia, nós nem almoçamos e, com muito esforço pedimos uma pizza a noite, para que o mais velho, de três anos, não ficasse também sem comer. 


No dia seguinte o pranto já não era constante, mas vinha de assalto. Vinha, me tomava, ia embora. Senti necessidade de respirar. Convenci o pai que nos faria bem sair um pouco, almoçar na rua, andar na rua e que poderíamos comprar umas roupinhas de prematuro para os gêmeos, com o dinheiro que a bisavó dera alguns dias antes. Desde o dia anterior eu olhava para meu filho e via - antes de tudo - a síndrome de down. Eu sabia que carregá-lo mais, acariciá-lo mais e comprar pequenas roupas pra ele me ajudaria a enxergar de novo meu bebê, que tem síndrome de down, mas não é a síndrome de down.


Durante o almoço, em um boteco do Ipiranga, percebi na outra mesa um menininho de uns dois anos que também tinha a trissomia. Ele estava com os pais, era pequeno, tinha os cabelos loiros fartos. Pra mim foi como ver uma pequena luz guia numa noite ainda escura. Fiquei encantada e feliz por nossos caminhos terem se cruzado. Aos poucos comecei a me sentir melhor e mais forte para seguir em frente.


Tivemos dificuldade de contar aos outros sobre a síndrome e por dias preferimos ficar sozinhos ou não dizer nada. Para a família preferimos contar à distância e por escrito através de mensagens. Por um lado a gente estava aprendendo muita coisa nova e precisávamos nos fechar e fortalecer, saber um pouco mais sobre o que nos esperava nos cuidados com a saúde, terapias e desenvolvimento dele, precisávamos entender esse novo terreno. Por outro lado também ficou claro para nós que não estávamos prontos para lidar com os comentários que viriam, por mais bem intencionados que fossem. 


Comentários fatalistas, religiosos, pesarosos ou esperançosos, simplistas, sobre destino, comentários profissionais, técnicos, comparativos ou até científicos não solicitados. Tudo que eu imaginava que as pessoas poderiam falar me soava agressivo naquele momento e eu não tinha, ainda, recursos para lidar com aquilo.


Fomos respeitados na distância que pedimos e o tempo passou. Aos poucos as pessoas foram sabendo. A falta de chão inicial passou em poucos dias. Passou, eu acho, porque não fazia sentido. Eu tinha um bebê pra cuidar e ele estava com dificuldade para mamar, alimentá-lo tornou-se mais importante. Nos unimos naquela tarefa árdua e urgente de fazê-lo ganhar peso.


A dificuldade de contar aos outros ainda me rodeou por alguns meses, acho que até sair o resultado do cariótipo. Miro já tinha nome, tinha crescido e estava saudável. Eu estava totalmente apaixonada por ele e não entendia muito bem porque ainda havia um tantinho de desconforto ao dar a notícia e imaginei que fosse o preconceito - meu e dos outros - dando as caras ou a vergonha por não ter falado antes.


Então, quando ele tinha entre 2 e 3 meses, uma pessoa querida me disse quando contei que talvez mudássemos para um lugar menor: “Que bom! Vai ser bom! Porque sua vida agora vai ser cuidar dele né?” e corrigiu: “Deles todos, mas dele por mais tempo.”


PORQUE SUA VIDA, AGORA, VAI SER CUIDAR DELE.


Por mais carinho que tenha havido na fala, essa frase doeu. Doeu e despertou algo que eu senti lá atrás, no dia que recebi a notícia, mas que na época ficou turvado pelo turbilhão todo de se saber mãe de uma criança com deficiência.


Lá dentro de mim, no furacão, eu imaginei algo que rejeitei - e por isso chorei tanto - mas que não consegui delinear. Quando ouvi a frase da minha amiga 3 meses depois, essas imagens se revelaram. Eu não havia imaginado uma criança com síndrome de down. Não havia rejeitado a imagem de um filho com deficiência. Eu havia rejeitado a mãe e chorado, chorado muito pela mulher que eu não queria ser.


Vieram claras como a água as imagens que se formaram na minha cabeça quando a pediatra falou que meu filho tinha traços nele que indicavam síndrome de down. Foi a imagem dura de uma mãe de pessoa com deficiência que se desenhou ali, naquele instante. A mulher cuja vida não é mais nada a não ser cuidar daquele filho. Para sempre. SUA VIDA VAI SER CUIDAR DELE AGORA. 


Não! Não! Eu chorei ali. Eu chorei depois. Eu não queria ser aquela mulher! Eu não queria ser mãe eternamente, integralmente, somente.


A imagem da mulher guerreira. A força além do próprio corpo. A dedicação desinteressada. A disponibilidade até o fim da vida. Até - o - fim - da - vida.


SUA VIDA VAI SER CUIDAR DELE AGORA


Tudo retornava com aquela frase. Tudo ficava nítido. O luto, não pelo filho, mas pela mulher que eu fui um dia, e que ainda podia ser tanto e tão bem se uma circunstância não tivesse me condenado.


E que circunstância foi essa? - Você me pergunta.


Não, nunca foi um cromossomo 21 a mais nas células de Miro. Assim como não foi a paralisia cerebral do filho que condenou minha amiga, ou o autismo da filha que determinou o destino de uma colega, ou ainda a síndrome rara de uma criança a responsável por fechar as portas para sua mãe. 


Quem nos condenou foi a sociedade. Foi a falta de políticas públicas para dar suporte necessário às pessoas com deficiência. Foi a falta de inclusão nas empresas e escolas. Foi não ter um serviço de apoio prático e gratuito aos cuidadores que os permitam não precisar parar de trabalhar para cuidar integralmente dos filhos. São os homens que, quase sempre, abandonam as mulheres quando nasce um filho com deficiência. São os amigos que admiram sua força mas não convidam seu filho com deficiência para passar o dia na casa dele. São todos que acham que é difícil demais e que não teriam a capacidade que você tem, e por isso nem tentam. São os que nem te convidam pra sair porque já entendem que você tem que cuidar do seu filho e não pode mesmo. São os que dizem “a vida dela é dura” e não param para pensar que podem fazer parte dessa dureza.


Quando eu me aterrorizei diante da imagem de uma mãe de pessoa com deficiência, também foi - na minha ignorância e fatalismo - nessa mulher que eu pensei: forte, abnegada, sem opção ou individualidade.


Não sou mais forte que ninguém. Não sou abnegada. Não quero viver sem opções nem sem individualidade. Não sou guerreira e nem nunca almejei esse título, por favor não me chamem assim. Quero políticas públicas e mudanças nas posturas individuais e sociais que permitam a todas as mães de pessoas com deficiência (inclusive e principalmente as mais vulneráveis) serem elas mesmas, terem sonhos, realizações, diversão e identidade. 


Que a imagem da mãe de uma pessoa com deficiência deixe de ser tão assustadora, tão aterrorizante e passe a ser apenas a imagem de uma mãe.


Por mais equidade. Para nossos filhos, e para nós.










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